A poesia do aço contra a força de Hades

João Vieira

Estreou no passado dia 7 mais uma produção do Teatro da Rainha, companhia com a qual colaboro vai para 30 anos. A nova peça intitula-se “Letra M” e baseia-se num texto de há cerca de 600 anos, chamado “O Lavrador da Boémia” de autoria de Johannes Von Saatz. O texto, escrito após a morte da mulher do autor, é um extenso e esmagador diálogo entre um Lavrador e a Morte. A perda da mulher leva o Lavrador a desafiar a Morte, exigindo-lhe explicações. O que poderá alguma vez justificar a dor que lhe foi por ela causada? Como escreve, numa nota sobre o espectáculo, o encenador e meu especial amigo Fernando Mora Ramos, trata-se de uma reflexão em forma de diálogo “sobre um desejo de eternidade utópico que persegue o homem desde os primórdios da razão.”

No confronto entre a Morte e o Lavrador, sou manifestamente seduzido pela Morte. A sua postura, o carácter implacável e a natureza irrefutável dos seus argumentos seduzem-me bem mais que a lamechice do Lavrador, “figura tacanha”, como lhe chama a Morte a certa altura, durante o confronto.

Contudo eu sou o Lavrador, tornei-me Lavrador, sou forçado a fazer as mesmas perguntas à Morte. Quis o acaso que me visse na condição deste Lavrador frágil e vulnerável durante a produção desta peça. Um lavrador feito Orfeu, que desceu e continua a descer ao reino de Hades em busca da sua Eurídice, na ilusão de que a poderá ainda trazer de volta. Um lavrador-Orfeu a tentar com diligência adormecer Hades, Caronte e Cérbero sem sucesso. Um lavrador-Orfeu que desafia, também ele, as proibições e olha para trás. Nada mais parece restar senão a memória. Mas, nada: a serpente deu mesmo um golpe fatal na minha bela Eurídice.

Entre as minhas idas e vindas ao domínio de Hades tentei encontrar ânimo para sonificar esta “Letra M”.

The show must go on e a tarefa é ingrata. Hades não se comove, Caronte não adormece e Cérbero continua atento ao meu mais simples gesto. Tentam mesmo apanhar-me nos seus conluios. São insensíveis à sedução do meu design sonoro. Não teria conseguido se não fosse a ajuda, o apoio, o estoicismo, da equipa deste "Letra M", que me acompanhou sempre.

Valho-me do cenário. O cenário do João Vieira — também ele transformado em passageiro de Caronte  durante a produção da peça — é uma máquina sonora poderosa, de valor musical inegável. Uma máquina sonora talvez improvável, certamente inusitada. A fazer lembrar, visual e acusticamente, as conhecidas estruturas sonoras dos irmãos Baschet.

Hades volta a intrometer-se quando penso por que outros caminhos este trabalho poderia ter-se metido. Estou certo que o João Vieira haveria de ter simpatizado com a ideia de os percorrermos juntos.

O som deste cenário de aço está presente, de uma forma ou de outra, de modo mais ou menos exuberante e exclusivo, em todas as intervenções sonoras que a peça contém.

Proponho ao espectador o desafio de perceber onde começa e onde acaba o cenário desta “Letra M”.  Uma extensão de João Vieira, situada, não se sabe bem, no espaço físico da acção ou no espaço virtual da quadrifonia sonora. Onde jazem as fronteiras entre o visual e o acústico?

No futuro, se Hades o permitir, iremos explorar as virtudes deste cenário feito de ferro, de aço e de poesia.

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