Leviandades

Ainda há pouco tempo fiz aqui um elogio a um escrito de Miguel Esteves Cardoso, que me pareceu totalmente justo. Trata-se de um jornalista que gosta de arriscar (reconheço-lhe essa virtude), mas que é embrulhado, ele também, tantas  vezes, nesta vertigem de ter de preencher diariamente o seu pequeno canto de página. Ontem espalhou-se. 
E por se tratar de uma injustiça cometida sobre uma figura que conheço bem e que é tratada de forma totalmente lamentável, não posso deixar de escrever aqui esta nota.
O pretexto da crónica de ontem do Público foi o gosto musical dos candidatos à presidência do PSD. Lá foi de metáfora musical, em metáfora musical até chegar a Gary Burton, dizendo dele que se trata de um talento “mediano que poderia ter sido maior se arriscasse mais.”
Saltou-me a tampa quando li isto! O Gary Burton não merece a colagem ao Aguiar Branco, simplesmente para levar uma duvidosa lógica musical até ao fim, 
Gary Burton é um músico que acompanho há uns quarenta anos. Por causa dele acabei a tocar vibrafone também. É um dos músicos mais respeitados do jazz, com uma carreira que se estende há quase 50 anos, pedagogo, improvisador perfeito, um inovador notável da técnica do seu instrumento (é conhecido o Burton grip), uma referência incontornável neste domínio, e um vanguardista, que como ele próprio lembrava, timidamente, numa entrevista que li, antecipou um dos movimentos mais interessantes da música de jazz – o chamado movimento jazz-rock fusion, geralmente personificado por Miles Davies – com os seus famosos quartetos.
Aluno do Berklee College of Music no início dos anos 60, foi aí depois professor, reitor e finalmente Vice-Presidente Executivo até à sua (recente) reforma. Mais informação aqui.
A lista de músicos com quem tocou ou toca constitui quase um directório da música e, sobretudo, do jazz moderno: George Shearing, Stan Getz, Carla Bley, Gato Barbieri, Keith Jarrett, Chick Corea, Steve Lacy,  Makoto Ozone, Herbie Hancock, B.B. King, Eberhard Weber, Stephane Grappelli,  e até o famoso compositor argentino Ástor Piazzolla, com quem produziu um dos discos mais absolutamente sublimes da história da música improvisada ocidental.
Pelas suas formações passou um número impressionante de músicos que com ele debutaram (Larry Coryell, Pat Metheny, por exemplo), e se vieram depois também a notabilizar.
Uma figura de referência incontornável da música, como disse. E é-o precisamente porque... está longe de ser mediana e, sobretudo, porque arriscou.

Pena o Miguel Esteves Cardoso mostrar não saber isto e ter feito este comentário tão leviano e deselegante a propósito de um músico notável. Ao contrário dos jornais, da guerra e do amor, na música não vale tudo...

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