Une voix trés humaine

O meu interesse pela viola da gamba tem-se intensificado desde há dois anos a esta parte. Desde que recebi a minha guitarviol —um parente afastado pode dizer-se— que tenho ouvido e estudado o instrumento com algum detalhe e ainda não perdi a esperança de vir a tocar uma viola da gamba genuina. Não vou competir com um Pandolfo, uma Hille Perl ou fazer sombra ao Fretworks, mas gostava de ter uma viola da gamba minha...

Este instrumento não tem grande tradição em Portugal e os concertos são relativamente raros. A visita de um grande executante é pois uma oportunidadee que não se pode perder, nem que isso implique uma viagem relativamente longa.

Para quem não conhece, digo-lhe que a nave do Igreja do Mosteiro de Alcobaça tem para cima de 100 m de comprimento, 20 m de largura e 50 m de altura. Não quero exagerar, mas o tempo de reverberação deve exceder bem os 15 segundos. Tudo parece grandioso neste espaço.
Imaginem agora o pequeno foco sonoro, colocado sensivelmente a meio desta longa nave. 
Uma viola da gamba, esse instrumento delicado, dos espaços íntimos e das expressões sonoras subtis, a voix humaine que fez a delícia dos poderosos entre o século XVI e o século XVIII, mais coisa menos coisa. A viola da gamba foi desaparecendo da paleta instrumental dos compositores à medida que os espaços de concerto foram crescendo, ou o sentido da audição dos junkies da música foi necessitando de estimulantes sonoros cada vez mais poderosos. Um instrumento que fugiu dos espaços nobres da música, mas que, graças a um movimento de revivalismo que começou no século passado, conhece hoje uma popularidade crescente e um interessse renovado pelas suas características únicas.

Imaginem, pois, por favor, esse instrumento subtil, que brilhava nos espaços íntimos dos salões dos poderosos, a soar hoje no espaço imenso da Igreja do Mosteiro de Alcobaça, tocada pelo mestre dos mestres, Jordi Savall, a percorrer, para nosso delírio, o reportório mais importante deste instrumento. Num contexto destes, posso-vos dizer que a viola da gamba parecia um instrumento vindo do Céu. E posso-vos garantir também que esta viola da gamba celeste foi pretexto involuntário para revisitar a minha origem mais remota...

Imaginem agora mais de 700 pessoas a assistir, atentas, a grande maioria delas constituída certamente por forasteiros atraídos por este último e singular evento do Cister Música - Festival de Música de Alcobaça. Pensem no que poderá ter feito rumar a Alcobaça toda aquela gente, para ouvir um instrumento que não deixou grande rasto na história da música portuguesa, mas que num daqueles delírios históricos que por vezes acontecem, acabou por ter alguma significado no Japão, a partir do século XVI por via portuguesa.

Há-de ser amor verdadeiro pela música!

Vá-se lá então perceber porque é que, pelo menos, estas mais de 700 pessoas não andam atrás do ministro, a fazer-lhe esperas em parques de estacionamento e a exigir-lhe explicações sobre as malfeitorias (confessadas!) que este governo tem feito na área da cultura; porque é que não desfilam na Avenida da Liberdade, empunhando cartazes e tarjas pretas; porque é que não fazem vigílias à porta de S. Bento ou outra qualquer iniciativa de luta, com mais boné ou mangueirada, manobras que têm belo efeito televisivo e são frequentemente usadas por quem se sente ou vê, de alguma forma, os seus interesses lesados por esta manhosa legislatura em que vivemos...? 


Deixemos as subtilezas para a viola da gamba...

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