Vidas perdidas

Há quase 60 anos ia passar férias a uma quinta de uns amigos de meus pais. Passei hoje por lá. A foto mostra um caminho, junto dessa quinta, que percorri vezes sem conta durante as minhas brincadeiras. Está praticamente na mesma. A quinta fica a uns 50 quilómetros de Lisboa. A viagem na altura era uma odisseia para a qual nos tínhamos de preparar com tempo e cuidado. Apesar de não haver problemas de tráfego nesse tempo, os escassos 50 quilómetros demoravam uma eternidade a percorrer. Eu enjoava muitas vezes pelo caminho, graças às curvas e contracurvas.
Não havia electricidade, na altura, por estas paragens. O dia começava e acabava cedo. A noite cerrada convidava a dormir. Ninguém ficava, obviamente, a ver o filme da meia-noite no cabo. Não havia cabo, não havia sequer rádio a pilhas nessa altura. O "transistor" portátil ainda demorou uns bons anos a fazer a sua aparição. Ninguém ficava, tão pouco, na cama até ao meio-dia. Os nossos ritmos estavam condicionados pela luz do dia. Andávamos à solta em constante “modo de aventura.” Estas férias constituiam, para mim, um prazer indescritível e permanecem gravadas nos cantos mais doces da memória.
Acabadas as férias voltávamos para o "conforto da cidade". Luz eléctrica, o rádio a válvulas, o ferro eléctrico... Os ritmos diários não mudavam tanto assim, mas na cidade podíamo-nos mover de noite, se houvesse necessidade, sem tropeçarmos a cada passo.
Nessa altura ainda comíamos os produtos que vinham destas paragens. Não havia "congelados," o peixe comprava-se todos os dias na "praça do peixe" e a fruta e as hortaliças vendiam-se no mercado ou em "lugares" abastecidos por lavradores de quintas, precisamente, como esta, onde passava férias. Nesta altura também, por estas bandas, o médico e a cura residiam longe. Percebo pois que as gentes que habitavam as zonas rurais se quisessem mudar para as vilas e cidades mais próximas. E de facto, volta não volta, lá apareciam por Cascais novas caras de gente tisnada pelo sol dos campos, mãos rudes que procuravam trabalho ali onde, qual milagre!, para iluminar uma quarto, não era necessário mais do que um gesto banal e onde a saúde estava um pouco mais perto. E percebo ainda melhor que os que habitavam as quintas e os casais por esse Portugal fora quisessem sair da sua escuridão e mudar-se para as cidades e vilas principais. Os "petromaxes" e os candeeiros a petróleo mantiveram-se os mesmos,  por estas paragens, durate muito tempo e a mudança tornava, comprovadamente, a noite mais clara.
E hoje?!!
Que justificação há para o contínuo êxodo para as cidades que ainda se verifica? Por que não foi encontrada uma forma mais equilibrada de ocupar o território? Será assim tão complicado?!
O cabo, os computadores, os telemóveis e os utensílios eléctricos são coisas banais. A quinta que outrora se iluminava a "petromax" ostenta agora uma antena parabólica...
Ignoro a razão que leva as pessoas a amontoarem-se em pequenos apartamentos, onde se ouve o vizinho nos seus actos mais íntimos, em prédios descaracterizados e sujos, situados em cidades saturadas de gente, em clima de pré-guerra civil. Cidades sem capacidade para acolher mais ninguém, sem possibilidade de proporcionar nenhuma nova verdadeira oportunidade, cidades onde nada de verdadeiramente diferente se passa. Cidades onde parece cada vez mais impossível criar condições para travar a tensão permanente que acompanha, sub-reptícia, o nosso dia a dia.
Ignoro também a razão que leva milhares de pessoas a ensardinharem-se num carro ao fim de semana, para, inebriados certamente pelos gases dos escapes, rumarem em filas intermináveis de trânsito, a uma praia da lata a fim de desfrutar uma nesga de sol, numa nesga de areia fofamente atapetada de coliformes fecais.
Ignoro, finalmente, a razão pela qual milhões de seres humanos, vivos e inteligentes, se deixam cair, inanes, num sofá a ruminar frente a um ecrã de televisão as maiores boçalidades e barbaridades que a humanidade jamais foi capaz de produzir em milhares de anos de civilização, e fazem, por incrível que esta verdade possa pareçer, destes seus actos o seu acto de resistência.
Os papagaios idiotas que nos governam há anos e outras criaturas que se julgam pagas para pensar por nós, repetem-nos incessantemente e com pompa, justamente através dos mesmos canais que passam estas mesmas boçalidades e barbaridades, que a esperança de vida aumentou e que hoje, graças às modernas possibilidades da ciência, temos uma vida mais prolongada e cheia dos confortos únicos, de benesses infindas e de oportunidades excitantes, que só as cidades proporcionam. Sugerem-nos que vivemos num país rico. Que somos do primeiro mundo. Deveríamos estar todos, portanto, de parabéns...
Do meu círculo de amigos mais antigos e mais íntimos, sobramos poucos. O resto já marchou ou prepara-se para marchar em breve. Vamos vendo, aos cinquenta e tal anos, sessenta, pais com oitenta e muitos, noventa e cem anos, rijos que nem peros sobreviverem, alegremente, aos seus filhos. Vamos observando tudo isto, uns do leito do hospital e outros perguntando se também iremos contrariar a ordem antiga e natural das coisas...

Há qualquer coisa de errado em tudo isto que estamos a fazer. Há conclusões erradas que estamos a tirar e mitos que estamos a alimentar. Afinal de que nos serve, de facto, este milagre,  impossível na quinta da minha infância, de conseguirmos iluminar uma casa inteira pelo simples toque de um botão? O que anda, é justo perguntar, esta mole imensa de gente das cidades a fazer? Como vão, em particular, as novas gerações reagir a tudo isto? E se a luz, de repente, se apaga?

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