Falemos de nós (novamente)

Cerca de trinta anos e 40 peças depois volto a um tempo e a um lugar onde fui artisticamente feliz. Tive de novo um daqueles problemas para resolver em que a solução surge como que por magia, ditada por uma força qualquer criativa que não controlo. Um daqueles momentos raros em que, como dizia Pat Metheny numa sua entrevista, somos levados a pensar que, entre tantas dificuldades, sacrifícios, carências, tensões e pesadelos, não estamos loucos e foi para isto que escolhemos fazer o que fazemos.

Desta feita sei, contudo, qual é a causa desta "inspiração": o texto de Fernando Mora Ramos chamado "E no princípio era a besta". Atingiu-me e sobressaltou-me desde o primeiro parágrafo.

O Fernando é, entre outras coisas, um dramaturgo de elite. Estará a cometer um pecado capital, de consequências trágicas, quem desconhecer a sua escrita dramática. Será autor de um crime sujeito a pena capital quem apenas andar atento ao dramaturgo de serviço ou à escrita da moda, pensando que o mundo começa e acaba nos limites estreitos de uma limitada visão tão periférica e ignorar a escrita dele. 
  
O Fernando é um escritor compulsivo, que escreve, não para sobreviver, mas porque a sua escrita é a vida mesmo. Escreve para que nós sobrevivamos. As moléculas desta escrita entram num processo, quase literalmente, químico, talvez alquímico, e transformam-se. É escrita real, de rei, cheira! Esse processo de escrita faz, por sua vez, disparar reacções físicas nos seus ouvintes/leitores, também elas reais. Os músculos contraem-se e distendem-se, de facto, os pulmões enchem-se e esvaziam-se, mesmo. O coração bombeia e desbombeia palavras a ritmo. Palavras que são absorvidas pela corrente do pensamento e, por sua vez, distribuídas pelos órgãos da mente que delas se vão alimentar. É verdade, sente-se, senti-o já. É uma escrita orgânica, essencial, que vence resistências e que, ao fazê-lo, nos faz, a nós, avançar, como algo orgânico, essencial, vencendo resistências.

Ao longo destes cerca de trinta anos de colaboração, eu, um homo acusticus, como ele me chamou um dia, aprendi com ele o valor do texto. Por vezes à custa de um exercício muito concreto de humildade, em que a acústica desceu ao real — chamemos-lhe a realakustik! — e se remeteu ao seu papel mais essencial, ao som necessário, ao som suficiente da palavra dita.

Com o Fernando aprendi a usar o condimento sonoro com a parcimónia de um experimentado cozinheiro. A frescura dos produtos é a essência da boa cozinha. O condimento, por vezes, serve apenas para disfarçar a sua falta de qualidade. Com o Fernando aprendi a não me valer de truques, que conheço, mas não uso. São opções. Uma pitada discreta basta, por vezes, para soltar sabores.

Curiosamente — ironicamente, diria eu —, em "E no princípio era a besta", numa dramaturgia onde a palavra é a rainha mais que absoluta, há um cenário acústico presente do primeiro ao último segundo do espectáculo. Como nunca houve em qualquer das nossas anteriores colaborações. Mas o som, desta forma assim omnipresente, é texto. Foi-lhe dada a possibilidade de escrever a parte despalavrada do texto.

Mais ironicamente ainda, acrescentaria, num teatro da terra, da madeira com o veio à mostra, do relâmpago violento, num teatro sem verniz, num teatro sem máscara, o som deste "E no princípio era a besta" é totalmente artificial, resultado de um complexo processo electro-matemático que produz a vibração primária. A máquina, também ela desnudada, também ela madeira electrónica com veio à mostra, sem verniz, sem máscara, a máquina vibra, conduzida, mas não limitada, pelos seus primeiros princípios. É uma vibração essencial que dita um som rugoso, primal, para um texto sem maquilhagem, que atinge o alvo ao primeiro tiro.

O Fernando Mora Ramos escreve como vive, com coragem, disciplina, conduzido, mas não limitado, pelos seus princípios primeiros, que respeito e partilho. Tem sido um exercício exigente, mas vital, este de estar à altura dele. 

Estou tão ansioso e excitado com esta estreia como estava antes de estrear o Ruzante, Fernando.





("Falar de nós" aqui.)

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