Um manifesto sobre o essencial


Numa análise, talvez simplista – mas quem sabe se a verdade não é, afinal, mais simples do que parece... –, eu dividiria as pessoas entre aquelas que agem, criam cruzamentos entre as suas acções e as dos outros, mantêm um permanente registo dessa dinâmica, juntam novas acções, fazem novos cruzamentos e sabem, a todo o momento, extrair o essencial de todo esse complexo diálogo.
E há as outras. Aquelas que vêem a realidade como bolinhas de sabão. A bolinha forma-se, o olhar fascinado é atraído por ela, o olhar segue-a, a bolinha passa, a bolinha rebenta, venha outra.
Este sábado, a Associação dos Antigos Alunos do Liceu Nacional de Oeiras/Escola Secundária Sebastião e Silva apresentou o segundo volume de "o Liceu". Mais um olhar sobre os anos daquela escola, por também eu onde passei, sobre os seus métodos, os seus alunos, os seus professores. A António Sampaio da Nóvoa, um condiscípulo do LNO, coube fazer a apresentação deste segundo volume. Da sua rica intervenção, a propósito desta nova publicação, ficou-me, entre muitas outras, a ideia que lançou sobre o isolacionismo que caracteriza os dias de hoje, feito de círculos individuais, dentro dos quais ninguém entra e de onde os indivíduos que neles se encerraram, quiçá sem disso se darem sequer conta, não saem. Círculos que não se tocam e que impedem, justamente, uma análise da qual se possa extrair o essencial, porque para o fazer é preciso conhecer muitos círculos, compreender a sua diversidade, entrar neles, ter a capacidade de os conseguir cruzar e extrair sempre o destilado de todo este processo.
Uma lógica a que chamaria "matriosca", esta, que eu cacracterizaria assim: de dentro de círculos surgem círculos, cada vez mais pequeninos, mesquinhos e estrangulados pelo círculo que os deu à luz. Uma lógica que sufoca, divide, isola, secciona, impede o cruzamento e faz definhar o conhecimento.
A esta lógica  “matriosca” eu oporia uma outra a que chamarei a lógica de Venn. Aqui, os círculos também se formam, mas agitam-se, fundem-se, cruzam-se, permitindo assim interceptar ideias, partilhar, destilar e extrair os tais valores essenciais. Os cruzamentos dão lugar a novos cruzamentos e ajudam a estabelecer novas categorias, apoiadas nas categorias anteriores. Assim se faz progredir o conhecimento.
A nossa vida está hoje mandrionamente assente numa lógica "matriosca", enquadrada e dominada por um modo de produção que a favorece e promove. A lógica de Venn é difícil, opõe-se ao status quo e, ainda por cima, parecem ser cada vez mais raros os que têm capacidade de a praticar. O progresso é, historicamente, o resultado da prevalência de uma lógica de Venn nas sociedades.
Ao ouvir as palavras de António Sampaio da Nóvoa, proferidas durante uma, aparentemente singela, apresentação de um livro, para um público preciso, restrito, longe de quaisquer câmaras, ao sentir de novo esta sua capacidade de extrair o essencial e, ao mesmo tempo, de o transmitir de forma muito clara – algo que só está ao alcance de quem conhece muitos círculos, se funde com eles, sem demagogia ou disfarce, e pratica a sua intercepção mútua, alguém entre o relojoeiro e o atleta de alta competição – voltou-me à memória a sedução que este seu discurso exerceu em mim em tempos não muito distantes. Sendo um discurso necessário, tem um potencial de mobilização tremendo, em contraponto ao discurso das bolinhas de sabão que, infelizmente, foi o que prevaleceu e até parece conquistar hoje alguns pontos fora do campo das matrioscas.
Ao longo da vida, tenho conhecido gente capaz de cruzar círculos e reduzir a complexidade ao essencial. São raros, mesmo raros. É duro e nem todos se revelam capazes de aguentar este processo. Muitos se perdem. Dos poucos que têm esta capacidade, ainda temos de excluir os que não fazem os cruzamentos mais apropriados, subvertendo ou comprometendo, comprometendo, pelo menos a fiabildade dos resultados, o tal essencial. E ainda são mais raros aqueles que, da sua experiência, conseguem construir o que eu chamaria uma "pedagogia do essencial" e de a transmitir capazmente.  O António Sampaio da Nóvoa é, claramente, alguém dotado de todas estas raras qualidades. Alguém de quem o País necessita urgentemente.

(fotos de Vasco Pitschieller)

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