O SOM DO CRAVO
1º andamento
No princípio era o silêncio. O pensamento abafado, a voz muda, o segredo, o
degredo, a clandestinidade. “Se fores preso, camarada”... Portugal
vivia em silêncio. Um silêncio que se vinha instalando desde tempos
remotos da história, um silêncio que crepitava desde os
autos de fé.
Fé.
No final de 1973, início de 1974, acreditei (e continuo a acreditar!)
que a educação musical é um factor de libertação. Que pela via da música
todos podemos atingir o nosso apogeu, todos podemos ser melhores seres
humanos. A experiência pedagógica, fugaz, que tive nessa altura,
imediatamente antes do 25 de Abril, parecia confirmar que o meu credo —
de que a música deveria fazer parte do currículo escolar, não do modo
acessório como acontecia até então, mas como disciplina fundadora — é
uma ideia razoável, para cujas bases queria contribuir. Silenciaram-me,
de forma absolutamente patética, nestes propósitos.
Havia
tempo que tinha mergulhado num universo musical caótico, onde cabia tudo. Esta
componente pedagógica, que logrei pôr, pela primeira vez e de forma
modesta, em prática ainda antes de Abril, se bem que por breves
instantes e de forma incauta, resultava de uma reflexão sobre esse
caos. Era uma espécie de destilação desse caos, que mais não era, por
sua vez, que um acto de resistência, um esforço pessoal de exigência de
liberdade e de crença na capacidade de transformação da sociedade, jogando a música neste processo um papel que creio ser fundamental. Esse universo musical caótico tinha sido a minha tentativa
de romper com o tal silêncio ancestral. A componente pedagógica era a emanação audível
desse processo.
Ao
mesmo tempo, perguntava a mim próprio aonde nos poderia levar toda aquela amplitude criativa e estilística que na altura existia, de cuja
influência também não escapei. Perguntava para que serviria todo aquele
novo ferramental sonoro, todo aquele experimentalismo formal, que tinha chegado também a nós, a que eu tinha, finalmente, acedido e que dominava a minha prática musical. Para que
serviria tudo aquilo se não existissem ouvidos para ouvir a nova música, esta música cheia de liberdade e tentadoras possibilidades, nomeadamente no plano tecnológico?
Como dar corpo a toda essa inquietação? Todas estas perguntas eram colidiam com o
silenciamento reinante.
2º andamento
O
25 de abril apanhou-me no meio destas perguntas sem resposta, mas
revelou-me, de imediato, também, uma enorme quantidade de respostas sem
pergunta. Tudo parecia
então possível. Todos os sons pareciam poder suceder a todo aquele
silêncio. Mas essas possibilidades não serviram para me dissipar as
dúvidas. Todas as dúvidas eram também agora possíveis.
Um
dia, regressava a casa bem tarde, e fui surpreendido por um intrigante
acontecimento sonoro. Uma nuvem sonora composta pelos ténues sons de
milhares de pequenos insectos que, na altura, não consegui identificar com rigor, produzidos talvez pela Tettigettalna aneabi, que soa assim.
Não é possível descrever o efeito de milhares destes insectos
espalhados por uma área sensivelmente do tamanho de um campo de futebol.
Façam, por favor, um esforço de imaginação. A tentação de usar aqui a
metáfora do pirilampo é grande. Em vez das luzes, imaginem-se "cliques".
Mas não, não vou cair nessa tentação...
Fiquei
ali quieto durante muito, muito tempo a ouvir aquele deslumbrante espectáculo
sonoro. Lentamente fui percebendo que a música que eu procurava estava
ao alcance do meu ouvido. Pré feita. Perfeita. Em vez de me preocupar
em introduzir mais sons no ambiente, de juntar mais som ao ruído, devia
talvez prestar mais atenção ao som, aos sons, que me rodeavam. Foi a minha revolução dos cliques.
O
próprio 25 de abril, que se ia desenrolando na altura à minha volta,
era muito feito de sons que, de forma subtil, se iam enraizando em nós e
exigiam, foi-se percebendo, constante capacidade de interpretação. A
Revolução tinha começado pelo som, o som da rádio. Foi o sinal sonoro das
canções que deu início às operações. Foi o som das marchas
militares. Foram as vozes dos locutores com a leitura dos
comunicados do MFA. “Aqui posto de comando do Movimento das Forças
Armadas”. Foi um enigmático Beethoven na madrugada, E novamente as marchas militares, designadamente uma, chamada
“Life On the Ocean Wave”, que ficaria conhecida como a “marcha do MFA.” Essa foi a sonoplastia original do 25 de abril. Rapidamente se lhe
sobrepuseram os primeiros gritos de liberdade, os (poucos) tiros, as
primeiras palavras de ordem, os primeiros discursos, os primeiros
comunicados. Por cima dessa sonoplastia original foram-se inscrevendo também as
vozes dos vários protagonistas da Revolução, cujo timbre ficou para sempre
gravado na memória auditiva de todos nós, os que vivemos esse momento.
As músicas antes proibidas tocavam agora continuamente, como uma espécie de jukebox
que adornava o nosso quotidiano. O grito das reivindicações era o coro
que marcava os momentos de tensão. Os passos da “Grândola” ouviam-se
firmes, num crescendo inexorável, e pareciam marcar a vida de toda a
gente. Ritmos que trocavam o passo a uns e acertavam o passo a outros.
O 25 de abril foi uma empolgante paisagem sonora. O cravo soava bem.
Foi
com o 25 de abril que aprendi verdadeiramente a escutar o mundo à minha
volta. Com o meu gravador ao ombro e de microfone em punho, aproveitei
para calcorrear quilómetros e registar tudo o que produzia som. O mundo
ouvido, guardado no inconsciente, começou a ter um significado diferente desde então. Dei-me conta
que todos os sons estavam ainda por descobrir. O 25 de abril veio-me
provar algo que eu já intuía: que era possível entender melhor o mundo
escutando-o. Só muito depois viria a descobrir que havia um grupo, lá longe, em Vancouver, no Canadá, que tinha avançado nestes domínios. É outra história.
3º andamento
É nessa altura, já o meu gravador, estava cheio dos sons do meu fascínio, que uma bomba rebenta, com enorme estrondo, nos emissores da rádio. De
instrumento da revolução, a rádio passou a obstáculo que era preciso
neutralizar. Silenciá-la, com estrondo, foi a solução. E ao estrondo seguiu-se
a imposição de um novo silêncio. Um outro 25, a querer restaurar velhos silêncios. Eu próprio fui vítima desta tentativa de silenciamento, num
incidente caricato que envolveu uma guitarra eléctrica tomada por uma
G3.
O
silêncio de antigamente, logo descobriram os promotores desse novo 25,
não era afinal possível. E o silêncio transformou-se em ruído.
O
silêncio é a tela negra onde todos os temores se projectam. O ruído é a
tela branca que ofusca todos os pensamentos. Ambos, silêncio e ruído,
visam os mesmos objectivos: tolher movimentos, impedir a acção. Silêncio
e ruído são ferramentas do poder. É preciso ter poder para conseguir
impor silêncio e gerar e manipular o ruído. É preciso capacidade de luta e de escuta para
contrariar e vencer este design sonoro perverso.
Dal 25 al CODA
Dal 25 al CODA
O
25 de abril significou, em grande medida e de uma foma muito concreta, perceber o mundo sonoro à
minha volta. Teve o efeito de acelerar a capacidade de o escutar. A
capacidade de escutar é algo que considero ser a componente decisiva da
Democracia. Escutar para além do silêncio que não nos permite ter voz e
escutar para além da cacofonia que procura mascarar e confundir as vozes
necessárias. Bem escutar, para bem soar. Há anos que venho chamando a
atenção para esta verdade singela: só escutando será possível
desmascarar aqueles que pretendem silenciar a nossa voz, banalizá-la ou afogá-la num
mar de vozes que tornam a nossa ininteligível e distinguir o som necessário do ruído malsão. Inútil.
50 anos depois do 25A tenho a certeza que ainda não ganhámos a capacidade de nos escutarmos uns aos outros. Sem escutarmos os nossos companheiros de jornada, sem os quais não atingiremos jamais um desígnio colectivo, não escutaremos, verdadeiramente, aqueles que apenas nos pretendem confundir e impedir a concretização desse desígnio. Se os tivéssemos escutado, de facto, não estaríamos como estamos. Eles disseram tudo.
50 anos depois do 25A tenho a certeza que ainda não ganhámos a capacidade de nos escutarmos uns aos outros. Sem escutarmos os nossos companheiros de jornada, sem os quais não atingiremos jamais um desígnio colectivo, não escutaremos, verdadeiramente, aqueles que apenas nos pretendem confundir e impedir a concretização desse desígnio. Se os tivéssemos escutado, de facto, não estaríamos como estamos. Eles disseram tudo.
Escutar é uma (talvez, a) exigência maior da Democracia, que Abril não conseguiu (ainda) ensinar.
(Uma outra versão deste artigo foi publicada no blogue Face Oculta da Terra, por ocasião do 40º aniversário da Revolução de Abril. A ilustração é minha)
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