Sassaricando


Uma das cornetas, colocada aqui numa rua de foliões, com o hospital em fundo

Benavente é a sede do concelho onde resido vai para 13 anos. É uma vila pacata, cheia de gente muito boa. 
Periodicamente, Benavente sai do seu torpor e faz-se ouvir.
Quem ler isto perguntará: faz-se ouvir? O quê, faz ouvir a sua voz? Faz sentir as suas reivindicações? Vocaliza com veemência a defesa dos valores das suas gentes? Pugna sonoramente pelos seus direitos? 
Não! Planta umas cornetas acústicas, dessas do tipo que se usa nas feiras, pelas ruas da vila e faz soar umas coisas a que podemos atribuir, com enorme dose de boa vontade, uma vaga parecença com música. Com isto azucrina os ouvidos dos fregueses, sem que estes tenham direito ao contraditório, i.e., sem escapadela possível. Esperemos que, cumprida a sua missão, esse material seja, entretanto, retirado mais rapidamente que o foram as decorações de Natal...
Passar nas ruas de Benavente durante os períodos das “festas” (acontece no Natal, no extenso período de “festas" de verão e, agora, no Carnaval) é um exercício penoso. Os altifalantes são espalhados de forma estratégica, por forma a ferirem de morte os ouvidos dos incautos moradores ou frequentadores do comércio local. Assim, certeiros, para que o processo de ensurdecimento seja fatal e 100% eficaz. Nesta altura, a este "sambódromo" plantado aqui na lezíria, ninguém escapa!
Desta "barrage" estrepitosa, disparada pelas autoridades locais com o apoio do comércio, como indica a voz do locutor de serviço, ficam duas grandes interrogações, que gostaria de colocar à reflexão de todos.
Primeira: a Câmara é a entidade a quem cabe licenciar e controlar, em primeira mão, as actividades ruidosas na via pública.
Uma leitura do nível sonoro feita de manhã,
onde se verifica um pico de quase 90 dB.
A leitura é informal porque não foi reaizada com
um sonómetro calibrado,
mas dá uma indicação...
Diz o DL n.º 9/2007, de 17 de Janeiro que:
"1 - (…) A realização de festividades, de divertimentos públicos e de espectáculos ruidosos nas vias públicas e demais lugares públicos nas proximidades de edifícios de habitação, escolares durante o horário de funcionamento, hospitalares ou similares, bem como estabelecimentos hoteleiros e meios complementares de alojamento só é permitida quando, cumulativamente: 
a) Circunstâncias excepcionais o justifiquem; 
b) Seja emitida, pelo presidente da câmara municipal, licença especial de ruído (…)"
Registe-se que ela tem de ser "emitida, pelo presidente da câmara municipal” e pergunte-se: onde está a circunstância excepcional? 
Ora é esta CM que está a promover, ela própria, actividades ruidosas. Pergunte-se, de novo: quando tiver de intervir para regular as actividades ruidosas de outrem ou tiver de dirimir alguma situação de conflito entre benaventenses, motivada por um qualquer problema de ruído, fa-lo-á com base em que autoridade?
Como me dizia o proprietário de um restaurante — bafejado com a distinção de ter uma dessas cornetas de feira a despejar sambinhas sobre os seus clientes, a ponto de um deles aventar a possibilidade de ir buscar uma caçadeira e pregar dois tiros na dita corneta — “pois é, se formos nós a fazer um bocado mais de barulho (dentro do estabelecimento!), passado uma determinada hora, não escapamos à multa.”
Segunda: este concelho contradiz o que se passa noutros concelhos do país, onde a cultura merece apoio e mostra um dinamismo digno de nota. Aqui, o mais próximo de cultura, a que os benaventenses parecem ter direito a aceder, são umas cornetas de feira espalhadas pela vila a emitir uma espécie de ruído, a que os mais distraídos poderão chamar música. Regularmente, para sair do torpor e fazer prova de vida. E o resto?
Nesta altura da história da Humanidade, em que as disfunções ambientais atingiram um ponto que faz soar todos os alarmes, valeria a pena recordar que o ruído foi o primeiro sinal, ouvido há decénios, de que algo estava mal. Foi a primeira disfunção ambiental, objecto de significativo e justificado clamor, silenciado em nome do “progresso”. Houvesse ouvidos para o ouvir e bom senso para interpretar o seu significado e não estaríamos hoje como estamos. Por detrás dos índices escandalosos de emissões de gases tóxicos e por detrás das contaminações assassinas, estavam e estão máquinas e actividades humanas criminosas, que já há muito geravam ruído fora dos limites do humanamente tolerável e muitas queixas não atendidas. Depois veio o CO2, os plásticos, etc. em excesso. Mas antes do excesso já se tinha ouvido o excessivo som  das máquinas que agora produzem esse excesso. Ninguém pareceu ligar então patavina ao ruído e até foi promovido para dar uma imagem de modernidade. Pensem nisso…

PS- Em 2010 deixei neste blog, um aplauso para uma decisão da CMB, que ameaçava então impugnar a localização do Aeroporto de Alcochete, justificando essa atitude com o ruído que a nova infraestrutura iria gerar. Entretanto, o ruído, pelos vistos, deixou de ser problema para a câmara. Talvez as vereações tenha, entretanto, ficado surdas.

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