Carta de um vírus em vilegiatura


Genoma do do coronavirus, 2019-nCoV de Wuhan (Instituto Pasteur)

 

Viva, estou a falar-te daqui do meio do muco que enche os alvéolos pulmonares de um tipo qualquer — não faço ideia quem seja.
É mais um.
Não me consegues ver, mas eu vejo-te muito bem.
Não me consegues ver, não nos consegues ver, mas nós estamos a ver-vos e somos muitos.
Somos, aliás, cada vez mais. Vamos sendo cada vez mais. Graças a ti e à tua estupidez.
Estamos a fazer exactamente aquilo que muitos de vocês fazem: a lutar pela sobrevivência, seja de que maneira for.
Mas temos uma enorme vantagem sobre vocês.
Tu, mesmo com os teus poderosos microscópios, mesmo com os teus sofisticados sequenciadores, não atinas comigo.
Eu já te tirei o retrato. De corpo inteiro.
E já percebi tudo o que me interessa sobre ti.
Mesmo que, aparentemente, tenhas sobre mim a vantagem de uma vida mais longa e os recursos que resultam do carácter poliforme do teu organismo, não tens hipótese comigo.
Nós fazemos rigorosamente apenas o que é necessário, unimo-nos, multiplicamo-nos e reproduzimo-nos mais depressa do que tu poderás alguma vez fazer. Somos mais ligeiros, mais simples e menos dados a distracções do que tu.
Estamos totalmente focados na nossa tarefa.
E estamos por todo o lado.
À espreita.
À primeira oportunidade vamo-nos agarrar a cada superfície do teu ambiente, a cada peça da tua roupa, vamos pousar em cada ponto do teu corpo, vamo-nos infiltrar por cada um dos teus tecidos, vamo-nos meter por cada um dos teus poros, furar as paredes de cada uma das tuas células. Vamos andar pacientemente à procura de cada uma dessas entradas. A nossa vida consiste em aprender como.
Só fazemos isso. Temos tempo.
Tu não.
O tempo que andas a perder com discussões inúteis, é o tempo que nós vamos aproveitar para te aniquilar. Não sobrará um único de vós.
Estavas talvez à espera de um meteoro? Algo vindo do além? Um “castigo” de uma qualquer divindade, dessas que vocês gostam de criar para vos consolar nas vossas frustrações?
Pois, não te canses mais.
Nós já aqui estamos.
Mesmo ao teu lado. Não nos viste?
Estamos aqui mesmo.
À espreita.
A vigiar as tuas células.

Não vai sobrar um único de vocês.
E tu estás a ajudar, felizmente. Oh se estás!
A cada dia que passa, verifico que a tua ajuda é preciosa. Nem sei o que faria sem ela…
Tudo o que podias fazer de errado, fizeste-o no passado e continuas a fazê-lo agora. Estragaste tudo à tua volta. Mas, sobretudo, estragaste aquilo que te trouxe ao ponto em que estás — os teus laços com os outros.
Que bom que andem agora todos às cotoveladas!
Juntos, tu com os outros, sois imbatíveis. Mas, felizmente, fizeste tudo para quebrar esses laços. És tão estúpido!
E eu estou tão feliz por o seres.
Porque isso facilita imensamente a minha tarefa.
E traz cada vez mais lutadores para o meu exército.
Exército, sim.
Porque é, de facto, uma guerra que aqui estamos a travar. Mas tu vais perdê-la!
Repara como consigo liquidar já, sem qualquer dificuldade, os mais velhos. É canja. Consegui perceber logo isso.
Mas, não te iludas! Tu, falo contigo, jovem, vais a seguir!
Vou continuar a aprender e, em breve, nem os que ainda estão para nascer vão sobrar. A estupidez não vos vai permitir ter tempo para perceber como é que nós vos vamos liquidar a todos, com toda a  facilidade, velhos, novos ou fetos.
A estupidez não escolhe idades, e a tua idade não vai, de facto, ser impedimento para eu concluir a minha tarefa.
Nem há locais ou situações privilegiadas para te defenderes de mim.
Não deixaremos de cumprir o nosso destino. E tu? Qual é o teu?

Nós, tu e eu, estamos intimamente ligados, desde os tempos mais remotos. Os nossos destinos parecem desde sempre ligados. Não penses, portanto, que te vais livrar facilmente de mim.
Seja onde for, seja quem for, mais hora menos hora, repito: não vai sobrar um único de vocês!

A menos que…

A menos que, para meu azar, resolvas emendar a mão. E percebas que, sem vocês, nós também não vamos longe e que isto é uma guerra que, nem nós poderíamos ganhar sem a vossa existência. É que nós precisamos de vocês, mas vocês não precisam de nós, para nada.
Já viste?
O que estás a fazer então?
O que andas para aí a fazer, a perder tempo em vez de restabeleceres os teus laços com os outros? De trabalhares para os outros, como trabalhas para ti?
Talvez assim me conseguisses ver, finalmente,
Talvez assim conseguisses virar o desfecho desta fatalidade.
Mas, por enquanto, apenas eu te vejo a ti.
Não me consegues ver, a mim, é verdade, mas consegues ver os outros, teus semelhantes, à tua volta.
Repara como estão vivos. Repara como, no fundo, querem todos continuar vivos como nós.
Pensas que algum desses, que vês à tua volta, quer morrer às minhas mãos?
Oh que ingénuo! Todos querem o mesmo que tu.
A única diferença entre vocês, é que pensas que só tu tens o poder de escapar às consequências da minha luta pela sobrevivência. Que te vais safar. Mas, como te disse antes, não vais. Só terás o poder de te veres livre de mim se assumires que o não podes fazer contando apenas contigo.
Eu sou muito mais esperto que tu. A minha luta por permanecer vivo resume-se, simplesmente, a criar mais de nós. Por outro lado, repara, não há, entre nós, velhos e novos, pretos e brancos, ricos e pobres, do norte ou do sul. Somos muitos, somos rigorosamente iguais e, graças a ti, seremos sempre quantos formos necessários para sobreviver. É por isso que somos imbatíveis.
Cada um de vocês que tu, com a tua estupidez, sacrificas à minha determinação, é alguém que não vais poder substituir. Que te poderia ajudar. Alguém diferente. Alguém que te poderia talvez ajudar precisamente por ser diferente. É nisso que reside o teu poder, não vês?!
Nós estamos todos focados no mesmo objectivo e cada um de nós que tomba será substituído, à tua custa, por alguém exactamente igual a mim, com a mesma determinação, o mesmo propósito e a mesma sanha por te sugar o último traço do teu ADN.
Eu estou focado e só me interessa uma coisa. Cada um de nós que desaparece é substituído por uma multidão de outros, que toma o nosso lugar e se junta aos outros nesse propósito. É o nosso foco que mantém, justamente as nossas fileiras em crescimento. É o nosso foco, único, que nos dá a força de que precisamos. O teu foco enfraquece-te.
Vê os que estão à tua volta. Ou melhor, ouve-os! Ouve-os, a sério. Ouve-os como ouvias quando andavas a dar os teus primeiros passos nesta Terra. Eles dizem tudo o que é preciso saber para mudar o rumo das coisas e tu já não sabes ouvi-los.
Talvez ainda haja tempo. Mas apressa-te porque eu viajo ligeiro. Quase nada pode impedir o meu desígnio.
Eu e os meus irmãos temos a simplicidade das coisas que perduram, que se adaptam, que resistem. Vimos de longe. Temos o foco, o espaço e todo o tempo do mundo..
E tu?

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