A Cantata de Évora

 Um telefone que toca. Passaram vinte anos. A surpresa do contacto. Do outro lado vem uma aliciante proposta: criar o envolvimento sonoro de um novo centro interpretativo, em Évora, instalado num espaço de características únicas, com muito material informativo para lá colocar.

O “caderno de encargos” que me é transmitido, encerra um enorme e complexo desafio. O centro interpretativo precisa de som que lhe "acrescente" espaço e lhe alivie a pressão informativa, tornando-o mais ligeiro sem lhe comprometer. função. Som que substitua, na medida possível, parte dos habituais dispositivos usados para exibir este género de conteúdos, painéis, ecrãs. Mas som que funcione também como uma espécie "sala de espelhos" e, ao mesmo tempo, conferindo virtualmente mais dimensão ao espaço expositivo, ajudar a transmitir informação que, de outra forma, iria sobrecarregar  e saturar esse espaço.

O telefonema foi de Cármen Almeida, coordenadora geral do projecto, que me transmite o conceito que gostaria de ver concretizado. Lança-me este repto com um entusiasmo que reflecte um carinho especial e indesmentível pelo projecto, que imediatamente me contamina. 

O Centro Interpretativo da Cidade de Évora é uma inciativa que tem vários objectivos: faz parte de uma preocupação do município de preservar e valorizar o monumento — o Palácio D. Manuel — onde todo este complexo está alojado, e pretende acrescentar ao monumento nacional esta mais valia, que é este centro interpretativo. Uma mais valia que irá seguramente, constituir um novo pólo de atracção da cidade.

O Centro Interpretativo vai ser inaugurado no próximo dia 30 de Julho de 2021, depois de um longo período de preparação.




A minha adesão a este desafio foi imediata.

Depois das conversas iniciais, verificámos a necessidade de dispormos de um texto e discutimos as modalidades em que esse texto deveria funcionar. Foram avaliadas as possibilidades de o produzir. Foi analisada toda a documentação que se relaciona com o tema. Foram  avaliadas as diferentes soluções técnicas possíveis. Foram cruzadas as diferentes especialidades. Foram analisadas as diferentes possibilidades técnicas de implementar o dispositivo técnico necessário para concretizar o projecto. Foram feitas visitas, reuniões de trabalho, foram tomadas as primeiras decisões, que viriam a condicionar toda a evolução do projecto. Tudo decorreu num clima excelente, de grande entusiasmo e cordialidade.

A pandemia caiu-nos, a todos, entretanto, em cima. O processo foi evoluindo com as limitações naturais que este fenómeno trouxe às nossas vidas, mas a determinação não esmoreceu.

Um aspecto que a todos criou grande expectativa foi o da definição e criação do texto. Quando, finalmente, o texto concebido pela Rita Taborda Duarte e pela Mariana Carvalho nos chegou às mãos, o entusiasmo que nos suscitou era indisfarçável. Constituiu, suspeitámo-lo desde o primeiro momento, um elemento fulcral de todo o projecto, que balizou, em larga medida, a evolução do meu próprio trabalho e o marcou fortemente. 

A criação do envolvimento sonoro do novo Centro Interpretativo da Cidade de Évora foi uma operação de enorme complexidade. 

A solução que tentei encontrar situa-se na confluência de uma série de géneros, num território que está talvez mais próximo daquilo que hoje se designa por Arte Sonora. Algo inusitado num género de aplicação como este, de natureza museológica. Situado entre a ópera, a instalação, a banda sonora e o guia sonoro mais tradicional.

Uma ópera, sim, uma ópera falada. Ópera porque existe uma narrativa por música, de índole dramática, feita de música, vozes solistas e coros. Cujo tempo e espaço são o tempo e o espaço da própria história da cidade. Cada “cena” tem a sua lógica própria, que pode ser apreciada época a época, de forma autónoma, seguindo a narrativa da exposição, mas que, na sua versão global, segue quase os ditames de um drama tradicional. A cidade como teatro. A obra retrata a epopeia que foi a evolução da cidade, desta cidade tão marcada pela história, como poucas o serão.






Uma banda sonora para um filme invisível, maior do que o espaço real o contém. Que transporta o visitante para fora dos limites materiais do espaço físico onde a exposição foi montada. 

Uma instalação, moldada a partir do som matéria plástica, que se articula com o espaço visual existente, dando-lhe uma quarta e inusitada dimensão. 

Um guia sonoro, que contém informação preciosa, um catálogo rico e diversificado, impossível de exibir nas paredes, painéis e quadros que estão expostos ao público, que assim permitem, eles também, uma outra leitura, menos tradicional.

O documento audio-visual produzido neste Centro, produzido ao vivo, pelo próprio visitante, pela sua própria acção, é uma forma nova e particularmente enriquecedora de desfrutar este tipo de espaço. 

É quase um museu dentro de um museu, dinâmico, vibrante, funcionando no contexto da tensão criada pela dimensão visual e sonora. 

Tudo isto é tornado possível pelo uso de um sofisticado sistema de áudio-guias. 

Os áudio-guias funcionam aqui como a régi, os bastidores e o palco de todo este complexo sistema. Poderia pensar-se que este seria um sistema que introduziria limitações, confinado por razões técnicas e de segurança, a uns simples auscultadores, ainda que especiais. Nada disso. O que os áudio-guias proporcionam é a entrada num novo universo, uma realidade, real na sua virtualidade, produzida no contexto dos mecanismos particulares da escuta e na tensão gerada com o espaço visual. 

Mas o que, no final, todo este conteúdo e recursos garantem é, certamente, uma fascinante experiência, nova, multifacetada, única. Uma experiência que repousa na escuta individual, mas que não bloqueia os ecos do espaço circundante e afina os outros sentidos para os desafios que o Centro propõe. Uma experiência que, embora íntima, não priva o indivíduo da participação numa sua partilha colectiva.




O resultado final deste projecto constitui uma solução que, não sendo quiçá (não sei) pioneira, é, seguramente, muito pouco habitual, única, certamente, entre nós. Uma solução única para uma história única.

Foi com um sentimento de orgulho e de enorme gratidão que encarei a oportunidade de dar corpo ao conceito de dimensão sonora deste Centro Interpretativo da Cidade de Évora, que a sua coordenadora imaginou e me ofereceu. Foi um privilégio ter concebido e dirigido a realização deste projecto tão especial.

Fica, finalmente, um convite para visitar a cidade e ouvir, com os seus ouvidos, este magnífico Centro Interpretativo da Cidade de Évora.

Comentários

  1. Obrigada Carlos Alberto. Obrigada por teres dado forma àquilo que eu sonhava de forma imprecisa. A "cantata" permite-nos mergulhar no tempo, no tempo da memória de uma cidade.

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  2. Estimado CAA, as minhas raízes alentejanas ficaram curiosas e todas contentes... Logo que seja possível lá ir sem ser mascarado, lá irei, para ver a vossa obra de arte !
    Um grande abraço e os meus parabéns !
    A. Carvalho

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