Uma mulher, num carro, a beber café (das notas de programa e algumas notas adicionais)

Foto Carolina Lecoq

O espectador entenderá, a seu tempo, no decorrer do espectáculo, a razão deste título. 

A inspiração para ele remete para uma série de 2012, concebida pelo comediante Jerry Seinfeld, intitulada Comedians in Cars Drinking Coffee. A série, que totalizou 11 temporadas, para um total de 84 episódios, foi pensada originalmente para plataformas digitais e passou depois do site, onde pôde ser vista originalmente, para a Netflix. Em cada episódio Seinfeld convidava um colega comediante, e, para cada um, escolhia um carro clássico, que melhor se ajustasse à sua personalidade. Seguiam depois num passeio até a um café ou restaurante, onde os dois tomavam café e conversavam. Os episódios poderiam divergir deste formato singelo, com a inclusão de cenas mais ou menos improvisadas.


Do formato desta série resultou, na minha opinião, uma das coisas mais bem concebidos a que pude assistir neste género. A qualidade da série resulta da enorme economia de meios, da sua subtil e eficaz integração e da força e enorme eficácia da escrita.


A primeira vez que trabalhei com o Abel foi há cerca de 23 anos, numa peça intitulada  Supernova, um texto de sua autoria, inserido no contexto da comemoração dos 500 anos do achamento do Brasil. Foi uma iniciativa do Dramat/TNSJ, em coprodução com a ASSÉDIO, do Porto, do CENDREV, de Évora e do Teatro Vila Velha/Companhia de Teatro dos Novos, de S. Salvador da Bahia (Brasil) e a colaboração do CAEV, de Viseu e da Cena Lusófona. A Supernova foi estreada em 25 de Abril de 2000, em S. Salvador da Bahia e percorreu depois algumas cidades portuguesas.


Nesse texto percebiam-se muitas das qualidades que este Magnético também contém, que me fizeram agora pensar nesta série concebida por Seinfeld. Não pelo conteúdo, mas pela forma. Os textos do Abel são extremamente depurados, de uma enorme eficácia e de um grande sentido de unidade. Falam de eus fragmentados, mas apontam para a sua (re)união.


Enorme eficácia, pois. Para todos os que participam na produção dos textos aludidos, a escrita do Abel, no seu despojamento, contém todas as indicações que permitem aos participantes instalarem-se nos respectivos blocos de chamada e lançarem-se em frente, de imediato, ao tiro de partida, sabendo quantas voltas vão ter de dar e as qualidades e características da pista onde vão correr. Recordo-me de ter escrito em 2000, que, em Supernova, tive a sensação de que o Abel estava a desafiar o compositor, nas suas didascálias, a encontrar a solução adequada para o envolvimento sonoro do seu texto. Afinal não era um desafio que estava a ser feito, a mim particularmente, ou naquela peça, em particular. Tratava-se, sim, de elevar a escrita a um outro patamar, coisa raríssima nos dramaturgos contemporâneos, presente também neste Magnético, de conceber uma partitura total, enxuta, mas, como disse, de enorme eficácia. Um texto, por tudo isto, de uma rara beleza.


Magnético volta a evidenciar esta capacidade de pensar de forma integrada o texto dramatúrgico, não como mero exercício de escrita de palavras —a que algum jeitoso, mestre  dos efeitos especiais poderá depois juntar um cocktail caprichoso de intervenções avulsas, feito de ornamentos coloridos, mais ou menos na moda,— mas como um todo, muito preciso, em que cada um, actores, cenógrafo, iluminador, sonoplasta e o compositor, na sua função específica, parte desde logo, com um conhecimento muito detalhado do valor dramatúrgico da sua intervenção. Fruto de uma visão culta do teatro, abrangente e moderna, mas profundamente enraizada na sua matriz ritual, com a qual me identifico plenamente. Um prazer raro, trabalhar com o Abel.


(Notas adicionais- Queria distinguir aqui a forma acolhedora com que fui recebido pela equipa do CENDREV, neste regresso ao TGR. E acrescentar que vamos certamente continuar a nossa colaboração, o Abel e eu.)

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