OVNIS e a Lei dos Vasos Comunicantes


John Williams (*) é um compositor de fitas. Não se lhe conhece qualquer brilharete significativo, fora do domínio da música para cinema de grande bilheteira. Mas John Williams goza de um enigmático estatuto especial, não porque tenha inovado o género ou criado algo de especialmente significativo fora dele, mas porque sabe cavalgar a blockbuster machine americana, proporcionando o fogo de artifício sonoro que os guiões hollywoodescos exigem.
A música deste compositor vai ser apresentada em Lisboa, no amplo espaço do Vale do Silêncio, dentro em breve, executada pela Orquestra Gulbenkian. Não tenho a mínima dúvida que o evento vai ser um tremendo sucesso. Talvez tenha direito a directo e até, quiçá, abertura de telejornal. O espaço vai estar à cunha, com toda a gente de bem a assistir e a aplaudir, no final, de pé. Porventura possuídos pelo espírito de um evento recente, realizado em local não muito distante, os espectadores assistirão ao mega evento, reverentes e de mãos postas, provavelmente em genuflexão, vergados perante o peso do “génio.”  Não estranharia que a ele assistam também muitos dignitários do regime, actuais ou em fase de botox. No final, toda essa gente voltará para casa como quem, depois de uma ida ao confessionário e de presença na missa, com deglutição da hóstia, para mais uma sessão de pecados.
Um olhar externo que percorra a programação dos grandes acontecimentos de massa, mais ou menos estivais, na área da música e que repare nos espaços onde decorrem, pensará: ena pá!, Portugal é um país com uma vitalidade artística prodigiosa. Deve ser um país incrível. Ali a música é mesmo levada a sério e não pára!! Eventos musicais, nesta altura, são à dúzia e sucedem-se de forma alucinante. 

Um vale de silêncio
Este do Vale do Silêncio é de borla. Ou melhor, parece ser de borla. É uma excepção. A torcida irá, seguramente, acorrer aos milhares, um pouco em razão do “preço” do bilhete. Mas há os outros. Os outros mega eventos e os outros milhares de fanáticos, militantes do festival, que não perdem festivais e concertos avulsos que surgem como cogumelos, sempre assentes neste formato prêt-à-porter, importado, para a presença nos quais parece sempre haver uma nota preta disponível para o respectivo ingresso. É muito, muito dinheiro que corre pelas entranhas destas iniciativas. É a lei dos vasos comunicantes: entra aqui sai de algum lado. Neste caso, a EGEAC, que organiza este acontecimento, poderá explicar esta extravagante física dos fluídos. A particularidade, no caso do Vale do Silêncio, é a de ir ser abrilhantado por uma entidade que já conheceu melhores dias, no que respeita à ajuda à reparação das profundas rachas culturais do povo português.

Se um alienígena...
Imagine um extraterrestre incauto, desembarcado recentemente do seu OVNI, a olhar para toda esta actividade frenética. Pensará que se trata de um país com uma fortíssima tradição musical, uma enorme proteção à arte de Euterpe e uma actividade cultural intensa, firmemente implantada no tecido intersticial da sociedade portuguesa. 
O nosso extraterrestre olhará para tudo isto e concluirá que só poderemos estar perante o corolário do esforço nacional, superiormente conduzido e politicamente sustentado, para desenvolver a cultura deste país e colocá-lo, neste domínio, a par do resto do mundo civilizado. O respeito pela sua tradição musical, pensará o extraterrestre, leva Portugal a querer dar a conhecer o que se faz lá fora, para ajudar a realçar o que se faz cá dentro...  O programa da esmagadora maioria das iniciativas a que o nosso extraterrestre assiste é preenchido com nomes importados, de estrelas em fogacho transitório ou em fase cadente, mas que importa! Deduzirá ele que a cultura, na miríade de formas e modos de se manifestar, incluindo estes mega eventos estivais, espelha uma luxuriante e harmoniosa actividade, continuada ao longo do ano, seja no verão seja noutra qualquer estação ou apeadeiro. 
Podemos antecipar os pensamentos que acorrem à mente deste extraterrestre, imaginário e distraído. Um grande festival, que inclua um conjunto de artistas diversificado ou a celebração do trabalho de um compositor considerado especial, seriam assim, pensará legitimamente o forasteiro vindo do espaço, uma arena de excepção, prestigiada, que distingue os seus intervenientes, uma mostra que culmina e complementa uma intensa e continuada actividade no domínio da cultura. Não suspeitará, o nosso extraterrestre que tudo isto não passa afinal de um gigantesco piano bar.
Um festival, como eu o imagino, é um espaço inclusivo, construído por todos, produzido por forma a que todos o possam desfrutar e onde todos possam intervir na medida das suas capacidades. Algo como, por exemplo, os festivais de onde emanou a tragédia grega, só possíveis de realizar pela iniciativa de uma elite culta, nascida de uma sociedade culta, onde todos são elite, como dizia o outro. Não é o caso. 

Há festivais e festivais
A esmagadora maioria destas manifestações da pimbalhice lusa não passa de mais uma ferramenta de exclusão, de afirmação de classe e de um estilo de vida rançoso, de um certo modo, badalhoco e indigente, de ser português. São iniciativas para distrair o pagode, facturar, marketear, entreter o turista e projectar um holograma de cultura. O público que assiste, totalmente anestesiado e esmagado pela tonelagem que estes acontecimentos arrasta, ficará com a sensação de subida na escala social. Mas, não. No fim continuarão os mesmos pindéricos de sempre. Continuarão a ignorar e a desrespeitar a rica tradição musical do País, que vai subsistindo nas poucas salas de reanimação e de cuidados intensivos, que por aí vão pedindo licença para continuar a existir, ligadas ao pulmão artificial. 
Há mega festivais e mega concertos lá fora? Há pimbas e pindéricos, alemães, franceses, ingleses, americanos e realizações pelintras noutros países? Há promoção de falsos ícones? Certamente. Mas o ponto de partida é totalmente diferente. Há, na generalidade dos países civilizados, uma actividade cultural intensíssima, recursos disponíveis, uma tradição, um património e um respeito pelos agentes da cultura, que cá não existe. 
Não podemos, também é certo, colocar todos os festivais que cá se realizam no mesmo saco. Alguns têm enorme mérito e serão produzidos com uma tremenda e louvável dose de carolice, por genuína preocupação cultural. Verdadeiro serviço público, portanto. Mas isso é, infelizmente, a excepção. 

Pode o pior ficar pior? 
Há muito que observamos este resvalar continuo para a catástrofe cultural. Para uma catástrofe “por vir,” como lhe chama o António Guerreiro, a propósito da crise ambiental. Guerreiro refere, ainda a propósito da crise climática, que podemos pensar em catástrofes ecológicas no futuro. Mas não nos podemos esquecer que “noutros sítios e noutros tempos elas não se conjugam no futuro, já se deram. Há populações inteiras para as quais o fim do mundo já chegou. Nós é que nem queremos dar por isso. Esta é a regra em que vivemos: todos os dias e a toda a hora estamos a ser avisados do perigo iminente, da catástrofe por vir, alienando-nos das reais catástrofes que não são iminentes, mas imanentes, na medida em que já aconteceram, aceleradas pela lei geral da aceleração própria do mundo moderno, que não produz apenas a vertigem, mas também o desenraizamento, o exílio e também as perigosas reacções políticas que lhes correspondem.” (Ípsilon, 2023/08/24)
Sim, há populações inteiras para as quais o holocausto cultural já chegou há muito e ninguém deu por isso. Há um Portugal que, em virtude da aplicação desta lei dos vasos comunicantes, não tem dinheiro ou energia, sequer, para tirar o cu do sofá e desviar os olhos, por um momento das televisões e das doses de “cultura” com que o intoxicam. Na melhor das hipóteses, haverá uns arraiais e umas feiras, com programa mais ou menos pimba e direito a fartura e mini, tudo já a prenunciar as próximas eleições.

E contudo... 
Saem hoje das escolas de música, conservatórios e departamentos de música das universidades, centenas de graduados, com uma qualidade nunca antes vista, para não falar dos que despontam em resultado da actividade pedagógica de inúmeras bandas filarmónicas e de projectos exemplares como as Orquestras Geração ou o Tocárufar. De facto, esta é a geração de músicos mais bem preparada de sempre. Em alternativa à vida de miséria a que estão cá condenados, alguns emigram. Não vão de jangada e nos países de acolhimento são recebidos, sem problema, frequentemente iniciando carreiras de grande sucesso. Alguns acabam por se tornar exemplos de talento, que no seu país de origem poucos reconheceram. Outros, a maioria, resignar-se-ão a arrumar partituras e instrumentos e procurar emprego como caixa de algum supermercado. Quando falam no problema da emigração dos nossos mais bem preparados de sempre, os que assim procedem —i.e., uma geração de responsáveis  políticos, essa sim, verdadeiramente rasca— lembram os médicos, enfermeiros, economistas, gestores, especialistas em informática, e outras especialidades da moda, mas esquecem os músicos.
Os filhos dos amigos do sofá vão-se, entretanto, arrastando até às escolas de música dos vários níveis, carregando os seus instrumentos, e aí serão preparados para depois serem encaminhados para os fornos crematórios da cultura em que se transformou Portugal. 

A metáfora
A música não passa, já terão adivinhado, de uma metáfora. Tudo isto não é mais, apesar de tudo, que o retrato do estado da nação e o retrato até será benevolente. 
Que todos devíamos meter a mãozinha na consciência e pensar seriamente no que andamos a fazer, afinal, neste mundo, parece-me uma evidência. Que toda a gente deveria corar de vergonha perante este estado de coisas, sobretudo, aqueles que tiveram e têm capacidade para mudar este triste fado, não tenho dúvida. Que ninguém vai ler este escrito, fazer esse exercício a sério e agir, é uma realidade sobre a qual também não tenho qualquer espécie de ilusão.

(*) Não confundir com John Williams, o excelente guitarrista australiano.

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